O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2023 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) aborda a questão da abrangência da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69.º do Código Penal (CP). O STJ decidiu, por maioria, fixar jurisprudência no sentido de que a aludida pena abrange todas as categorias de veículos, independentemente da categoria envolvida na prática da infracção criminal.
Introdução
O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2023 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) aborda a questão da abrangência da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69.º do Código Penal (CP). O STJ decidiu, por maioria, fixar jurisprudência no sentido de que a aludida pena abrange todas as categorias de veículos, independentemente da categoria envolvida na prática da infracção criminal.
O caso
A decisão resultou de um recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo Ministério Público na sequência do decidido em 22/01/2020 pelo Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), no âmbito do processo n.º 46/19.5GAOPH.C1, no qual se discutia a condenação do arguido pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, nos termos dos arts. 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal (CP), na pena de multa de 60 dias, à taxa diária de € 5,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses.
A controvérsia girou em torno da interpretação do artigo 69.º, n.º 2, do CP, na redacção introduzida pela Lei n.º 77/2001 que eliminou a expressão "ou de uma categoria determinada", presente na redacção anterior, fazendo assim nascer a dúvida sobre o alcance da proibição nos casos concretos. É a seguinte a redacção actual do art. 69.º, n.º 2, do CP: “A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria.”
Discutia-se, portanto, a questão de saber qual a concreta abrangência da sanção acessória aplicada, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra concluído no sentido de que a pena acessória de proibição de conduzir, aplicada a um arguido condenado por condução em estado de embriaguez, se aplicava a todas as categorias de veículos.
Acontece, porém, que tal questão já havia sido apreciada e decidida pelos Tribunais Superiores em sentido contrário, existindo uma decisão prolatada pelo Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do processo n.º 157/10.2GTABF.E1, e transitada em julgado a 16/11/2010 que, numa situação factual em tudo idêntica, havia considerado que “Quanto à questão de direito em causa, embora a Lei n.º 77/2001 tenha eliminado a locução, “ou de uma categoria determinada”, que constava da versão originária (1995) do n.º 2 do art. 69.º do C. Penal (A proibição pode abranger a condução de veículos motorizados de qualquer categoria ou de uma categoria determinada), tal eliminação apenas põe termo à redundância antes presente no texto legal, sem que o seu significado se altere minimamente, pois a actual formulação compreende, gramaticalmente, tanto a proibição relativa a todas as categorias de veículos, como de alguma ou algumas delas, ganhando em simplicidade e correcção gramatical. (…) Mantém -se, pois, a possibilidade de restringir a proibição de conduzir a alguma ou algumas categorias de veículos que era a interpretação corrente do art. 69.º n.º 2 do C.Penal antes das alterações introduzidas pela Lei n.º 77/2001 e foi mesmo mantida depois daquela alteração”.
Verificava-se, como tal, um caso de oposição de julgados, estando os identificados acórdãos em confronto sobre a mesma questão fundamental de direito relativa à possibilidade (ou não) de aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor abrangendo todas as categorias de veículo com motor, ou apenas alguma ou algumas dessas categorias – o que motivou a interposição de recurso para fixação de jurisprudência e justificou a sua admissibilidade.
Decisão do Supremo Tribunal de Justiça
A posição maioritária do STJ, expressa no identificado Acórdão n.º 8/2023, considerou, em suma, que a supressão da expressão "ou de uma categoria determinada" operada pela Lei n.º 77/2001 visou precisamente estabelecer a aplicação universal da pena acessória a todas as categorias de veículos, mais sustentando que essa interpretação harmoniza o regime penal com o Código da Estrada, no qual a sanção acessória de inibição de conduzir, aplicada em contraordenações graves, já abrangia todas as categorias (pelo que restringir a pena acessória em crimes, mais graves, criaria uma incoerência no sistema).
A decisão fundamentou-se também na necessidade de uma maior eficácia na prevenção da criminalidade rodoviária, considerando a gravidade das condutas que levam à aplicação da pena acessória e na necessidade de uma resposta penal coerente e dissuasora, argumentando-se que a limitação da proibição a certas categorias poderia criar desigualdades e frustrar as finalidades de prevenção geral (na medida em que a ilicitude da conduta é a mesma independentemente da categoria do veículo).
Considerou assim este Colendo Tribunal, em suma, que a proibição de conduzir só é efectiva na protecção da segurança rodoviária se aplicada a todas as categorias de veículos uma vez que permitir a condução de outras categorias inviabilizaria a finalidade da pena, posicionando-se no sentido de que a individualização da pena no caso concreto pode ser feita através da sua duração, dentro dos limites legais, sem necessidade de restringir categorias.
O Acórdão sublinhou ainda a posição assumida nesta matéria pelo Tribunal Constitucional, que tem reiteradamente validado a constitucionalidade da aplicação universal da pena acessória, mesmo quando isso implica restrições ao exercício profissional.
Note-se, porém, que a decisão tomada neste acórdão de uniformização de jurisprudência não foi unânime, contando com um voto vencido, da autoria do Juiz Conselheiro António Latas, que defendeu a possibilidade de restringir a proibição a certas categorias, em casos excepcionais, atendendo, designadamente, aos princípios da culpa, da proporcionalidade e da individualização da pena. Para este Juiz Conselheiro, a limitação seria admissível em situações em que a gravidade do caso concreto, a culpa do agente e as exigências de prevenção justificassem uma resposta penal mais branda, nomeadamente em casos em que prevalecessem questões do foro profissional, de saúde ou de outra natureza relevante, funcionando assim como uma espécie de "válvula de escape" do sistema (permitindo ao Tribunal adaptar a pena às circunstâncias do caso concreto, sem comprometer a segurança rodoviária).
Conclusão
O STJ entendeu que a interpretação do artigo 69.º, n.º 2, do CP, que melhor atende à finalidade da norma, à coerência do sistema jurídico e à jurisprudência dominante é aquela que aplica a pena acessória de proibição de conduzir a todas as categorias de veículos motorizados, assim concluindo no sentido da abrangência universal da aludida pena, mas a divergência expressa no voto vencido demonstra a complexidade da questão e a necessidade de uma análise cuidadosa, em cada caso concreto, à luz dos princípios constitucionais e penais.
Para informações detalhadas, recomenda-se a consulta ao texto integral do acórdão disponível em https://files.diariodarepublica.pt/1s/2023/09/18400/0000500024.pdf.
Inês Magalhães, Advogada.
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