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Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 9/2024

CCSM, Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 9/2024
Legitimidade do Assistente e do Ministério Público para prosseguir com a acção penal em casos de convolação do crime de violência doméstica para crime(s) de natureza particular

Introdução

Este artigo analisa o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2024 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que aborda a questão da legitimidade do Ministério Público e do Assistente para prosseguir com a acção penal em casos de alteração da qualificação jurídica dos factos, no decurso do julgamento, por crime de violência doméstica, passando o arguido a ser confrontado com a prática de crimes com natureza particular.

O Caso

A decisão resultou de um recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pela Assistente (vítima nos autos) que não se conformou com o acórdão proferido em 13 de Outubro de 2022, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 560/19.2PATVD.L1, 9.ª secção.

Nesse pleito, o arguido havia sido acusado pela prática do crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal (doravante, CP), mas, no final do julgamento, o Tribunal de 1.ª Instância concluiu que não havia prova suficiente para condenar o arguido pela prática desse crime, absolvendo-o. No entanto, os factos provados incluíam elementos típicos de crimes de injúria e difamação, previstos nos artigos 181.º e 180.º do CP, respectivamente. Suscitava-se assim a questão de saber se o processo poderia prosseguir para a condenação pelos crimes de injúria e difamação, considerando que estes crimes dependem de acusação particular, a qual não havia sido deduzida.

Confrontado com essa problemática, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que, tendo sido o arguido acusado pela prática de crime de violência doméstica, com base em factos atentatórios da dignidade, da integridade física e da honra da ofendida, sendo absolvido da prática desse crime (por falta de verificação dos seus elementos típicos), não pode ser condenado pela prática de um crime de injúria, ainda que se tenham dado como provados todos os elementos típicos deste ilícito criminal. Em suma, entendeu aquele Venerando Tribunal que a falta de acusação particular retira legitimidade ao ofendido e ao Ministério Público para prosseguirem a acção penal num crime de natureza particular.

Acontece que, a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa conflitua com jurisprudência já exarada por outros Tribunais Superiores nesta matéria, designadamente com o entendimento proclamado pelo Tribunal da Relação de Guimarães em acórdão de 25 de Setembro de 2017, que, em sentido diametralmente oposto, concluiu: “Tendo sido o arguido acusado pela prática de crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, do CP, com base em múltiplos factos atentatórios da dignidade pessoal, da integridade física e da honra da ofendida, apesar de o arguido não ter sido condenado por falta de elementos típicos de tal crime, o arguido pode ser condenado pela prática de crime de injúria p. e p. no artigo 181.º, n.º 1, do CP, uma vez que se deram como provados todos os seus elementos típicos e inexiste obstáculo processual a tanto dado que a ofendida, em tempo próprio, apresentou queixa, se constituiu assistente, acompanhou a acusação pública e persiste em vontade inequívoca de prosseguimento dos autos. O que, mesmo sem acusação particular deduzida, confere legitimidade ao ofendido e ao MºPº para prosseguirem a acusação num crime de natureza particular”. Estamos, portanto, perante um caso paradigmático de oposição de julgados, estando os identificados acórdãos em claro confronto sobre a mesma questão fundamental de direito relativa à possibilidade (ou não) de prossecução da acção penal, por parte do Assistente e/ ou Ministério Público, nos casos em que existe uma convolação dos crimes sub judice, passando estes a ser de natureza particular, mesmo sem uma acusação particular deduzida nos autos – o que motivou a interposição de recurso para fixação de jurisprudência e justificou a sua admissibilidade.

Note-se, com relevância para o presente, que em ambos os casos em confronto, a vítima havia apresentado queixa, constituído-se assistente e acompanhado a acusação pública, demonstrando, como tal, a sua inequívoca vontade de prosseguimento dos autos.

Decisão do Supremo Tribunal de Justiça

Ao Supremo Tribunal de Justiça (doravante, STJ) coube assim a tarefa de dirimir a questão jurídica controvertida de saber se, tendo sido o arguido acusado pelo Ministério Público pela prática de crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, do CP, com base em múltiplos factos atentatórios da dignidade pessoal, da integridade física e da honra da ofendida, na impossibilidade, a final do julgamento, de condenação do arguido por falta de elementos típicos de tal crime, o processo pode prosseguir para condenação, em minus, pela prática de crime de injúria p. e p. no artigo 181.º, n.º 1, do CP, tendo-se dado como provados todos os seus elementos típicos já que a ofendida, em tempo próprio, apresentou queixa, se constituiu assistente e acompanhou a acusação pública. Ou seja, saber se, mesmo sem uma formal “acusação particular” deduzida, se mantém a legitimidade do ofendido/assistente e do Ministério Público para prosseguirem a acusação e a prossecução processual em tal crime de natureza particular.

Tal como elucida o STJ, quanto à consequência processual no caso de o Tribunal concluir que os factos apurados não permitem a condenação pela prática do crime de violência doméstica, mas antes pela prática de um crime de injúria, na jurisprudência era possível descortinar três posições: 1) a primeira vem entendendo que, encontrando-se o arguido acusado ou pronunciado como autor de um crime de violência doméstica e não se apurando, em julgamento, factos bastantes para o preenchimento dos requisitos típicos de tal crime, mas apenas suficientes para lhe atribuir a autoria de um crime particular contra a honra e não se tendo o queixoso constituído assistente e não tendo deduzido acusação particular (nos termos do artigo 285.º do Código de Processo Penal), o Ministério Público carece de legitimidade para fazer prosseguir a acção penal, devendo o arguido ser absolvido definitivamente de tal crime particular (neste sentido, por outros, AC TRP, de 25/11/2015); 2) uma outra corrente jurisprudencial, embora reconhecendo legitimidade do ofendido para exercer a acção penal pelo crime particular, apenas permite que a mesma se exerça após o cumprimento do disposto no artigo 359.º do CPP (não havendo oposição) ou num novo processo (em caso de oposição ao prosseguimento, vale como notícia do crime), deduzindo-se ai a competente acusação particular (neste sentido, por outros, Ac TRC de 28/1/2010); 3) a terceira posição reconhece o cumprimento dos requisitos de legitimidade do ofendido no caso de aquele se ter previamente constituído como assistente e aderido à acusação pública pelo crime de violência doméstica – em que se continham também os factos que se vieram a provar, consubstanciadores do crime particular –, entendendo como desnecessário o cumprimento do preceituado nos artigos 358.º ou 359.º do CPP (neste sentido: AC TRP, 30-01-2013, relator: Pedro Vaz Pato, AC TRP, 27-04-2016, relator: Vítor Morgado e AC. TRL, 17-06-2015, Relator Graça Santos Almeida).

O STJ, após analisar os pressupostos formais e substanciais do recurso, decidiu uniformizar a jurisprudência no sentido de que: "O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da ação penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento, por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.”, considerando que, em suma, perante a apresentação de queixa pelo ofendido, a sua subsequente constituição como assistente e o acompanhamento da acusação pública considerava-se verificada a condição de prosseguibilidade de acusação particular, mantendo-se quer a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, quer do assistente para a prossecução processual, acentuando-se que, in casu, à assistente “nada mais lhe era processualmente exigível”.

Para este Colendo Tribunal, na impossibilidade de deduzir acusação particular, o acompanhamento da acusação pública pelo assistente (na qual se incluem os factos que configuram o crime de injúria) deve ser considerado como equivalente à acusação particular, no que se refere à sua função material, ou seja, a vontade de que o arguido seja julgado e condenado pelos factos imputados. O Tribunal considerou ainda que impedir a condenação por injúria, com base na falta de acusação particular, equivaleria a negar à vítima o seu direito de acesso à justiça e a uma tutela jurisdicional efectiva, violando assim um princípio constitucionalmente consagrado. Sendo igualmente atentatório do princípio da proporcionalidade na medida em que “recomeçar” o processo para que a vítima deduzisse acusação particular seria uma medida desproporcional, considerando que o direito de defesa do arguido não foi prejudicado e que o julgamento já havia ocorrido. Além do mais, e em face do princípio da lealdade processual, o STJ entendeu ainda que a vítima tem o direito de ver o seu caso resolvido de forma célere e justa, sem entraves processuais desnecessários, pelo que a interpretação das normas processuais deve ser feita de forma a proteger a confiança da vítima na justiça, evitando surpresas negativas no final do processo.

Conclusão

Em suma, o acórdão do STJ demonstra um esforço para equilibrar as necessidades de um sistema processual eficiente com a proteção dos direitos das vítimas, garantindo que estas não sejam prejudicadas por formalismos processuais excessivos. A decisão promove a segurança jurídica, a celeridade processual e o acesso à justiça, evitando que a justiça seja denegada por questões meramente formais. Somos da opinião de que a solução adoptada é a que melhor se adequa ao espírito da lei e aos princípios em que esta se baseia, permitindo o funcionamento do sistema jurídico de forma coerente e harmoniosa. Este acórdão estabelece assim um precedente importante para a interpretação e aplicação do direito processual penal em casos semelhantes, representando o término de uma importante controvérsia jurisprudencial, fixando jurisprudência no sentido da proteção dos direitos das vítimas e na busca da justiça material.

Para informações detalhadas, recomenda-se a consulta ao texto integral do acórdão disponível em: Diário da República: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2024, de 9 de julho


Inês Magalhães, Advogada.

* A presente comunicação tem efeito meramente informativo, não constituindo o seu conteúdo uma solução para resolução de situações concretas, nem o devido aconselhamento jurídico. O leitor deve procurar aconselhamento jurídico adequado para cada caso concreto. Não é permitida a cópia, reprodução, divulgação e/ou distribuição, em partes ou na integra, desta comunicação sem consentimento prévio.

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