Chamado a depor: as várias formas de produção da prova testemunhal no processo penal português
Introdução
A prova testemunhal ocupa um lugar de destaque no processo penal português, sendo frequentemente denominada “rainha das provas”, dada a sua omnipresença nos Tribunais e a sua relevância prática para a descoberta da verdade material dos factos. Em muitos casos, especialmente quando inexistem provas documentais ou periciais, é o testemunho que permite ao Tribunal reconstituir a realidade dos acontecimentos e fundamentar a decisão judicial.
Com efeito, a prova testemunhal tem uma enorme relevância prática: tanto no inquérito como na audiência de julgamento o processo ocupa-se largamente com a inquirição de testemunhas. Socorrendo-nos da famosa síntese de Jeremy Bentham (A treatise on judicial evidence by Jeremy Bentham, by M. Dumont, 1825, p. 226), podemos dizer que as testemunhas são efectivamente “os olhos e os ouvidos da justiça”.
No ordenamento jurídico português, a prova testemunhal é regulada pelo Código de Processo Penal (CPP), nomeadamente no artigo 128.º e ss. O princípio da liberdade de apreciação da prova confere ao julgador a faculdade de valorar os depoimentos segundo as regras da experiência, lógica e ciência, sem estar sujeito a critérios rígidos de hierarquia entre os diferentes meios de prova. Isto significa que o Tribunal pode atribuir maior ou menor credibilidade ao testemunho, desde que fundamente a sua convicção de forma racional e motivada.
A prestação de depoimento testemunhal é um contributo do cidadão para a realização da justiça penal a que ele está juridicamente obrigado. Tanto assim é que, de acordo com a parte final do n.º 1 do art. 131.º do CPP, quem for convocado para depor como testemunha só se pode recusar a depor se a Lei lhe conceder essa faculdade.
O depoimento das testemunhas em processo penal em Portugal está, por isso, sujeito a um conjunto rigoroso de regras e prerrogativas, destinadas a garantir a veracidade, a protecção dos direitos fundamentais e a eficácia da justiça.
Prerrogativas de inquirição
A decisão de convocar uma pessoa para depor como testemunha cabe, em regra, à autoridade judiciária que dirige o processo na fase em que se pretenda ouvi-la. A iniciativa para tal pode partir dessa própria autoridade judiciária ou resultar de pedido ou indicação de algum outro sujeito ou participante processuais.
Durante o inquérito é ao Ministério Público ou ao órgão de polícia criminal a quem a investigação seja delegada que competirá promover a inquirição de testemunhas que se afigurem úteis ao cumprimento das finalidades dessa fase processual. A testemunha é inquirida pelo magistrado do Ministério Público ou, havendo delegação para o efeito, por um órgão de polícia criminal ou por um técnico de justiça dos serviços do Ministério Público. Note-se que a inquirição da testemunha não é pública, pelo que a ela não pode assistir nem a comunicação social, nem o público em geral, nem nenhum dos demais sujeitos processuais ou seus Mandatários.
A testemunha pode, no entanto, fazer-se acompanhar por Advogado em qualquer acto processual em que seja chamada a depor, podendo o seu Advogado informá-la, quando entender necessário, dos direitos que lhe assistem, mas sempre sem intervir na inquirição. É importante sublinhar que o Advogado que representar a testemunha não pode ser o defensor de nenhum dos arguidos no processo.
Na fase de instrução, a testemunha só pode ser inquirida pelo juiz de instrução, podendo assistir à inquirição o Ministério Público, o defensor do arguido e o Advogado do assistente. Contudo, nenhum destes sujeitos processuais pode questionar directamente a testemunha, estando autorizados, no máximo, a suscitar pedidos de esclarecimento ou requerer ao juiz de instrução que sejam formuladas as perguntas que entenderem relevantes para a descoberta da verdade.
No julgamento, a inquirição da testemunha é feita em audiência, começando por ser inquirida por quem a indicou e sendo depois contra-interrogada pelos Mandatários dos restantes sujeitos processuais. Na instância, o inquiridor é livre de colocar as questões sobre factos objecto da prova que se lhe afigurem úteis à procedência da sua pretensão, estando a contra-instância limitada à matéria que foi objecto da instância e ao que seja relevante para aferir a sinceridade e credibilidade do depoente. Não obstante, os juízes e os jurados podem, a qualquer momento, formular à testemunha as perguntas que entenderem necessárias para esclarecimento do depoimento prestado e para boa decisão da causa.
Às testemunhas não devem ser feitas perguntas sugestivas ou impertinentes, nem quaisquer outras que possam prejudicar a espontaneidade e a sinceridade das respostas. A inquirição deve incidir, primeiramente, sobre os elementos necessários à identificação da testemunha, sobre as suas relações de parentesco e de interesse com o arguido, o ofendido, o assistente, as partes civis e com outras testemunhas, bem como sobre quaisquer circunstâncias relevantes para avaliação da credibilidade do depoimento. Seguidamente, se for obrigada a juramento, deve prestá-lo, após o que depõe nos termos e dentro dos limites legais.
Quando for conveniente, podem ser mostradas às testemunhas quaisquer peças do processo, documentos que a ele respeitem, instrumentos com que o crime foi cometido ou quaisquer outros objectos apreendidos. Se a testemunha apresentar algum objecto ou documento que puder servir a prova, faz-se menção da sua apresentação e junta-se o mesmo ao processo.
O depoimento testemunhal é um acto pessoal e, portanto, indelegável. Motivo pelo qual só a testemunha, e não um seu qualquer procurador ou representante, pode depor por si. Sendo necessária a obtenção de testemunhos de várias pessoas, cada uma depõe na sua vez, não sendo admitida a prestação conjunta de declarações testemunhais. Para que os depoimentos de umas testemunhas não sugestionem ou condicionem as declarações de outras, na audiência de julgamento não se admite que as testemunhas assistam aos depoimentos das testemunhas que as precedam.
O depoimento deverá, em todas as fases processuais, obedecer ao princípio da oralidade, quer isto significar que a prestação de quaisquer declarações processa-se por forma oral, não sendo autorizada a leitura de documentos escritos previamente elaborados para aquele efeito. Isto não significa, no entanto, que o declarante não possa socorrer-se de apontamentos escritos como adjuvantes de memória.
A Lei prevê ainda a possibilidade de o Tribunal ordenar o afastamento do arguido da sala de audiência, durante a prestação de declarações, sempre que: haja razões para crer que a presença do arguido inibiria o declarante de dizer a verdade ou o declarante seja menor de 16 anos e houver razões para crer que a sua audição na presença do arguido poderia prejudicá-lo gravemente.
Modalidades de Inquirição
Pese embora na fase de julgamento a regra seja a da prestação de depoimento presencial, no ordenamento jurídico-penal português estão previstas outras formas de inquirição, adaptadas à natureza do processo e às circunstâncias da testemunha, designadamente:
Inquirição por Videoconferência
O Código de Processo Penal prevê que a inquirição com recurso a equipamento tecnológico que permita a comunicação, à distância, por meio visual e sonoro, em tempo real é admissível sempre que: a) a testemunha resida fora do município onde se situa o Tribunal ou juízo da causa; b) não houver razões para crer que a sua presença na audiência é essencial à descoberta da verdade; e c) forem previsíveis graves dificuldades ou inconvenientes, funcionais ou pessoais, na sua deslocação.
Para além destas situações, a inquirição por videoconferência ou teleconferência é ainda admissível sempre que a presença física da testemunha seja impossível ou desaconselhada, por razões de segurança, saúde, distância ou protecção especial (designadamente quando se mostre necessário para garantir o anonimato e segurança).
A utilização da videoconferência deve respeitar as regras processuais e garantir a publicidade da audiência, a imediação e a possibilidade de o juiz avaliar adequadamente a credibilidade do depoimento.
Caso a prestação de depoimento não possa realizar-se em simultâneo com a audiência de julgamento, o conteúdo das declarações da testemunha é reduzido a auto, sendo aquelas reproduzidas integralmente ou por súmula, conforme o juiz determinar, tendo em atenção os meios disponíveis de registo e transcrição.
Depoimento com ocultação da imagem e/ou com distorção da voz
Oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou da testemunha, o Tribunal pode decidir que a prestação de depoimento em audiência de julgamento decorra com ocultação da imagem ou com distorção da voz, ou de ambas, de modo a evitar-se o reconhecimento da testemunha. Tal é admissível sempre que existam factos ou circunstâncias concretas que revelem intimidação ou elevado risco de intimidação da testemunha.
Inquirição noutro Tribunal
Sempre que não seja possível garantir as condições técnicas necessárias, a prestação de depoimento a transmitir à distância deverá ocorrer em edifício público, se possível em instalações judiciárias, policiais ou prisionais, que permitam a colocação dos meios técnicos necessários.
Inquirição no domicílio
Quando a testemunha, por fundadas razões, não poder deslocar-se ao Tribunal, pode ser inquirida no local onde se encontra, mediante autorização judicial e em dia e hora previamente designados.
Inquirição de testemunhas residentes no estrangeiro
As testemunhas residentes no estrangeiro são inquiridas no local da sua residência através de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real, sempre que aquelas possuam os meios tecnológicos necessários para o efeito.
Depoimento por Escrito
Excepcionalmente, algumas personalidades como membros do Conselho de Estado, membros de órgãos de soberania, juízes dos tribunais superiores, membros do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do Conselho Superior do Ministério Público, oficiais generais, bastonário da Ordem dos Advogados e o presidente da Câmara dos Solicitadores, altos dignitários de confissões religiosas, entre outros, podem prestar depoimento por escrito.
O Presidente da República e agentes diplomáticos têm o direito de ser inquiridos na sua residência ou na sede dos respectivos serviços.
Em suma, o ordenamento jurídico português prevê diversas modalidades de inquirição de testemunhas em processo penal, adequadas às circunstâncias do caso concreto e às necessidades de protecção, eficiência e acessibilidade do sistema judicial. A presença física continua a ser o modelo padrão mas a videoconferência ou outros meios telemáticos – modalidade a que na prática judiciária cada vez mais se recorre – permitem acomodar situações específicas sem comprometer os direitos dos visados, nem a busca pela verdade material. Se for chamado a depor como testemunha é essencial estar informado dos seus direitos, deveres e das formas pelas quais poderá prestar o seu depoimento. Pelo que, se pretender fazer valer as suas prerrogativas, não hesite em contactar-nos: a nossa equipa está disponível para esclarecer as suas dúvidas e assegurar que os seus direitos sejam plenamente respeitados.
Para informações mais detalhadas, recomenda-se a consulta aos seguintes diplomas legais: Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro – Código Processo Penal (designadamente, arts. 139.º/1, 318.º e 319.º) e Lei n.º 93/99, de 14 de Julho – Lei de Protecção de Testemunhas.
Inês Magalhães, Advogada.
* A presente comunicação tem efeito meramente informativo, não constituindo o seu conteúdo uma solução para resolução de situações concretas, nem o devido aconselhamento jurídico. O leitor deve procurar aconselhamento jurídico adequado para cada caso concreto. Não é permitida a cópia, reprodução, divulgação e/ou distribuição, em partes ou na integra, desta comunicação sem consentimento prévio.
Para informações detalhadas, recomenda-se a consulta ao texto integral do diploma legislativo em: https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/lei/26-2025-911488696
Inês Magalhães, Advogada.
* A presente comunicação tem efeito meramente informativo, não constituindo o seu conteúdo uma solução para resolução de situações concretas, nem o devido aconselhamento jurídico. O leitor deve procurar aconselhamento jurídico adequado para cada caso concreto. Não é permitida a cópia, reprodução, divulgação e/ou distribuição, em partes ou na integra, desta comunicação sem consentimento prévio.



